Norma Culta, Língua Padrão


Norma Culta, Língua Padrão e Preconceito Linguístico: Uma breve discussão.

            As pessoas mudam, seus atos deixam de ser como eram antes, muitos fatos deixam de ser considerados e perdem seus valores ou deixam de ser tidos como certos, os conceitos mudam e, principalmente, a nossa língua muda e evolui. As pessoas e as sociedades evoluem com o passar do tempo. Naturalmente a língua acompanha essa evolução e assim criam-se as variantes das línguas de acordo com as necessidades sociais e naturais dos falantes. A língua é usada no seu contexto histórico, por isso está sujeita a transformações, mas essas mudanças nem sempre são levadas em consideração na prática de ensino formal da língua, nas instituições do nosso país.
            Precisam existir, na relação professor-aluno, clareza e entendimento mútuo entre as partes. Se isso não ocorre, a comunicação é comprometida. Conhecer a língua em todas as esferas sociais se faz uma necessidade primordial, para garantir a comunicação no processo de ensino e aprendizagem. A esse respeito, os autores, Del Prette (2010), afirmam que, "Na sociedade, a comunicação é responsável pela formação de extensas redes de troca social que mantêm e alteram a cultura e, consequentemente, a realidade social." (Del Prette, 2010, P.64). Nesse sentido, através de nossas práticas educativas, devemos acompanhar a evolução do mundo, da sociedade e sobretudo da língua que fazemos uso diariamente.
            Normalmente temos como referência a gramatica da língua escrita e não da fala. Essa é a referência para um dado momento histórico e social, por isso, não deve ser recurso único para dar conta de estudar a língua e seu uso, pois, previamente criada e engessada para ser seguida, não será capaz de representar o uso corrente da língua com o passar do tempo. Por isso, ensinar e supervalorizar essa gramática na escola não parece ser uma atitude apropriada, pois a mãe das línguas românticas, o Latim, já nos mostrou que a língua tem vida. Ela pode morrer, se modificar ou até mesmo ressuscitar. Claro! O Hebraico é o melhor exemplo de ressurreição de uma língua!
            Essa atitude de criar uma gramática modelo a ser seguido, geralmente dos gramáticos e certamente de muitos estudiosos da língua, acaba gerando um grande preconceito linguístico em relação à população que não tem acesso ou que não necessariamente precisa usar o português padrão para se comunicar no dia-a-dia. Principalmente as camadas sociais consideradas inferiores, pobres ou marginalizadas sofrem preconceitos linguísticos constantemente, pois se utilizam do português não-padrão, variante sem prestígio ou desvalorizada perante a sociedade. Nosso trabalho tratará, rapidamente, desse tema tão complexo e ao mesmo tempo tão rico para uma discussão a cerca dessa realidade presente no mundo inteiro. Sim, pois tanto o preconceito linguístico quanto a evolução das línguas se fazem presente em várias nações e comunidades linguísticas do mundo inteiro.
            As universidades, as escolas, juntamente com seus professores e educadores precisam colocar em prática o que muito se fala nas aulas sobre linguística e ensino de língua, no nosso caso, sobre o ensino de língua portuguesa. Essa língua tem evoluído e se modificado constantemente nos últimos séculos. Porém, as mudanças nem sempre são consideradas na prática formal de ensino da língua. As escolas recebem alunos com conhecimentos diversos, indivíduos de camadas sociais também diversas e que chegam à escola para aprenderem sua língua, supostamente primeira língua ou língua materna. Em poucos dias de aula, os alunos percebem que a língua portuguesa que aprendem é na verdade tão estrangeira quanto à língua inglesa, segunda língua ensinada nas escolas.
            A prática de ensino do professor, a comunicação escrita e a língua falada pelos alunos apresentam diferenças quilométricas. Primeiro, existem construções gramaticais que são ensinadas nas aulas, que quando faladas soam, para muitos, tão estranhas quanto uma frase em mandarim ou em russo. Muitos alunos, possivelmente, nunca viram ou ouviram falar essa construção gramatical antes. No entanto, todos são obrigados a usar e escrever tais construções, pois do ponto de vista da norma culta (português padrão) são construções corretas, por isso precisamos aprender e usá-las.
            Os alunos se sentem verdadeiros estrangeiros quando se utilizam da norma culta da língua, pois, dependendo do local ou situação, a dita linguagem culta causa certo estranhamento nos ouvidos de muitos indivíduos. O falante torna-se quase um artista, um poeta, alguém que fala diferente. Cavallari (2011), em sua abra sobre bilinguismo, fala sobre indivíduos que vivem em ambientes bilíngues e usam ou aprendem duas ou mais línguas. Ela compartilha sentimentos diversos dessas pessoas que se sentem estrangeiros em sua própria língua. Acreditamos também que muitos brasileiros carreguem esse sentimento em relação à aprendizagem da nossa língua portuguesa, norma culta padrão.
            Os professores e os alunos se esforçam para usarem e aprenderem essa gramática, mas na maioria das vezes esse uso correto da língua fica na própria escola ou só serão usadas em situações muito formais. Nas situações informais, os indivíduas fazem uso do português não-padrão (coloquial), pois flui naturalmente e garante a comunicação com outros indivíduos, em casa, no trabalho ou nas ruas. Isso mostra a necessidade de inserir, formalmente, o português não-padrão nos ambientes escolares para garantir a comunicação entre alunos e professores. É preciso dinamizar as diferentes formas da língua portuguesa no sentido de valorizá-las igualmente, contudo, é preciso esclarecer sobre a importância de saber as formas padrão e não padrão, como também os momentos e situações a serem usadas.
            Heloisa, professora aposentada da rede pública de São Paulo, mencionada numa reportagem, escreveu um livro didático. Sua proposta e da obra é que se aceite o português nao-padrao na sala de aula. Os alunos trazem para a escola todo tipo de linguagem, ao invés de reprimir esses alunos, ela sugere que aceitemos que aqueles que usam a linguagem popular possam ter liberdade de expressão e que não sofram preconceito linguístico. O que geralmente acontece com esses indivíduos? São taxados e rotulados como burros ou analfabetos, pois não sabem falar a língua portuguesa - norma culta. De fato, o preconceito linguístico é um problema social no país. Contudo para a autora, a ideia não é ensinar a linguagem coloquial para os alunos na escola, pois já sabem o português nao-padrao.
            “Não queremos ensinar errado, mas deixar claro que cada linguagem é adequada para uma situação. Por exemplo, na hora de estar com os colegas, o estudante fala como prefere, mas quando vai fazer uma apresentação, ele precisa falar com mais formalidade. Só que esse domínio não se dá do dia para a noite, então a escola tem que ter currículo que ensine de forma gradual”. (Leão, ONLINE). A possibilidade de prestigiar a vinda do português nao-padrao para a sala de aula é uma ideia brilhante e desafiadora. A iniciativa da professora Heloisa casa muito bem com a ideia sugerida na obra de Bagno (2006). Toda variante merece respeito e seu valor linguístico. Para tanto, é preciso haver uma junção do português padrão e do português nao-padrao. As instituições precisam prestigiá-los e aceitá-los igualmente no ambiente escolar.
            Essa união das variações linguísticas e suas dinamizações na prática docente devem ser feitas efetivamente através da criatividade e da aceitação efetiva dos profissionais. "O contexto educativo é dinâmico e muitas vezes imprevisível, exigindo mediação competente na condução de interações com e entre alunos e repertório elaborado de alternativas de desempenho para conduzir o processo de ensino-aprendizagem." (Del Prette, 2010, p.95). Os autores sugerem que tenhamos criatividade, flexibilidade e coragem para mudar o curso da ação educativa em função do desempenho do aluno no que diz respeito a soluções de problemas em relação aos novos desafios. De fato, sempre há desafios para nós educadores. Dar as boas vindas ao português nao-padrao no ensino formal da língua portuguesa é um grande desafio para a nação. É nosso dever enfrentar esses desafios, nos livrar dos preconceitos linguísticos e superar as dificuldades.
            No caso da inserção do português nao-padrao na prática de ensino formal da língua portuguesa, é preciso de fato aceitar esse grande desafio para todo o país, uma vez que o preconceito linguístico está enraizado em grande parte de nossa sociedade. Essas mudanças poderão ocorrer no futuro, talvez não tão próximo. No entanto, mesmo que demore a virar uma prática social, precisamos criar oportunidades e nos aproveitar das vantagens que as variantes do português nao-padrao nos proporcionam, como escola, para despertar a curiosidade em nossos alunos e criar ambientes nos quais a comunicação e a aprendizagem ocorram de forma efetiva, espontânea e natural. Para isso, o português nao-padrao deve ser visto como um grande aliado.
            Ao mesmo tempo, precisamos nos colocar como alunos e aprender mais sobre as variações linguísticas da nossa língua, pois de fato, muitos de nossos alunos e colegas sabem muito e têm muito a nos ensinar. No livro de Bagno (2006), "A Língua de Eulália", a professora doutora, Irene, diz o quanto ela aprendeu com a personagem Eulália tida como fonte inacabada de conhecimento, mesmo sendo semianalfabeta. Nesse exemplo, Irene passa ser aluna, ela se distancia do seu papel principal (professora) e passa a observar práticas semelhantes ou diferentes, usadas por outra educadora, neste caso a Eulália cujo conhecimento popular se mostra interminável.
            Através das observações e reflexões sobre diferentes práticas e principalmente sobre sua própria prática, o educador é capaz de buscar novos conhecimentos e melhorar profissionalmente. Esse tipo de reflexão pode ser aplicado ao ensino e a igual valorização das variantes do português nao-padrao na escola. Contudo, essa deve ser uma atitude conjunta, ou seja, grupos de professores, escolas e comunidades. "A reflexão não pode ser vista como um processo solitário do educador. A reflexão deve ser tratada como prática social, e para isto é necessário que ela seja refletida juntamente com outros profissionais.” (PRADO e SILVA, 2009, p. 65).
            Nessa perspectiva, devemos nos policiar e ter um olhar autocritico sobre nós mesmos, nossas atitudes e preconceitos, pois há muito que aprender, por isso, todos nós devemos ser alunos a todo o momento e sempre tentar construir novos conhecimentos; linguísticos e sobre a história das línguas, ou pelo menos da nossa. Para tanto, é preciso que estejamos com nossas mentes abertas e preparados para lidar com os nossos preconceitos e o preconceito dos outros, uma vez que sempre existirão.
            Na educação existem necessidades constantes de inovação nas práticas educativas para suprir as carências dos educandos em geral. Isso é antes de tudo uma questão de ética e respeito ao ser humano, sua história e ao seu contexto social. A esse respeito, nosso grande Paulo Freire nos deixou uma enorme contribuição. Seu pensamento pode nos ajudar muito para refletirmos sobre a nossa língua portuguesa e sobre aspectos linguísticos diversos. Dessa maneira, a possibilidade de repensarmos a forma como usamos nossa língua servirá como aparatos para entendermos a lógica linguística natural da língua e lhe dar o devido valor, independente do grupo social que dela faz uso dessas variantes.
            "De quando em vez, ao longo deste texto, volto a este tema. É que me acho absolutamente convencido da natureza ética da prática educativa, enquanto prática especificamente humana. É que, por outro lado, nos achamos, ao nível do mundo e não apenas do Brasil, de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado, que me parece ser pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano. Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos. Neste sentido, a transgressão dos princípios éticos é uma possibilidade mas não é uma virtude. Não podemos aceita-la". (FREIRE, 1996, p.8)
            Nessa perspectiva, esse mesmo respeito deve-se dar aos diversos fatores linguísticos e sociais presentes na nossa língua. Procurar conhecer a história de nossa língua, ou até mesmo a história de outras línguas, é uma sugestão que possivelmente nos mostrará a necessidade de nos livrar de tanto preconceitos linguísticos que estão enraizados na nossa sociedade. Para nós, não devemos jamais pensar que estamos certo disto ou daquilo, pois mesmo alguns fatos na sociedade deixam de ser, pois na visão de Paulo Freire, a historicidade se encarrega de provar o contrário dos fatos. Com isso, ele quer dizer que, muitas mudanças ocorreram e ocorrem na história da humanidade, e, muitos fatos que eram tidos como certos deixaram de ser. Podemos pensar em descobertas científicas, conceitos diversos, entre outros exemplos, que perderam seus valores perante a sociedade, por exemplo, o Latim.
          Se algo que pode ser considerado um tanto concreto se perde, não podemos pensar que nossa língua deve ser engessada, inflexível ou que nunca se deve mudar, pois naturalmente tudo na sociedade tende a mudar, por isso devemos acompanhar as mudanças. Ensinar o português padrão é uma prática constante nas escolas. As outras variantes são deixadas de lado. O fato é que, desconsiderar o português nao-padrao no ambiente escolar e valorizar apenas o português padrão não são atitudes que satisfazem as necessidades linguísticas das inúmeras e diferentes comunidades no país. Mas esse ensino do português padrão ainda é, até hoje, o que aprendemos nas escolas e universidades. São grandes desafios na educação. As mudanças são necessárias, pois, ao olhar da historicidade de Paulo Freire, tudo tem validade e, portanto, cedo ou tarde deixa de ser satisfatório. Deixar de lado o preconceito linguístico não será uma tarefa fácil para a sociedade.  
            Beauclair (ONLINE) sugere ação reflexiva sobre o nosso aprimoramento a o desenvolvimento de nossas competências e habilidades de pensar e de saber as coisas. “Dilema que, cotidianamente, se reflete nos fazeres, nos saberes e nas práticas: em muitos lugares, agora, neste momento, existe alguém se perguntando, se questionando porque está fazendo isto ou aquilo. Sabemos que, enquanto sujeitos humanos, só poderemos avançar em qualquer campo de nossas vidas, nos desenvolvermos enquanto humanos e sujeitos quando ampliamos nossas capacidades de reflexão”. Beauclair (ONLINE). Precisamos ter a capacidade de pensar sobre as mudanças sofridas pela nossa língua e ter a coragem de também mudar o nosso olhar e o nosso modo de educar. Ele se apoia em Paulo Freire, diz, “Educar é um ato político e exige que, para a transformação do mundo, o sonho seja vigoroso, pleno de coragem para sua realização”. Esse sonho é possível, basta ter coragem coletiva!

Na imagem abaixo há uma ótima sugestão de como devemos enxergar o nosso português.


            Cada falante desse idioma se utiliza, diariamente, de variantes diferentes da língua portuguesa. Por isso não devemos dizer, ter ou olhar esse idioma como uma língua pura cuja abrangência é nacional. Dizer isso seria um mito.  Em sua obra sobre preconceito linguístico, Bagno (1999) fala sobre vários mitos criados sobre a língua portuguesa. A partir de inúmeros mitos surgem também os famosos preconceitos linguísticos. "Parece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma forte tendência a lutar contra as mais variadas formas de preconceito, a mostrar que eles não têm nenhum fundamento racional, nenhuma justificativa, e que são apenas o resultado da ignorância, da intolerância ou da manipulação ideológica" (BAGNO, 1999, p. 13)
            O preconceito linguístico atinge toda sociedade e constantemente aparece entre as diversas afirmações negativas de falantes do país inteiro. Quando vamos para qualquer interior de grandes cidades ou para uma comunidade pobre cujas condições de vida não são "as melhores", percebemos na fala das pessoas diferentes formas de pronúncia das palavras. Um linguajar diferente. Para muitos falantes escolarizados do nosso português que percebe como aquelas pessoas falam, e que falam uma variedade diferente da nossa língua, passam a ter atitudes preconceituosas, pois supostamente, as pessoas estariam falando e pronunciando palavras da língua de forma errada.
            Esse é um pequeno exemplo de como ocorre o preconceito linguístico. Mas, tudo isso ocorre por causa da falta de conhecimento da historia da língua por muitos falantes escolarizados. Segundo Bagno (2006), essas diferenças fonéticas são as mais estigmatizadas, ou seja, recebem a maior carga de preconceito e rejeição por parte do conhecedor de português-padrão.
            "Quando alguém diz “véio”, “trabáio”, “cuié”, por exemplo, ou “grobo”, “broco”, a maioria dos falantes escolarizados torcem o nariz ou, quando são mais delicados, mordem o lábio para não rir — diz Irene, lançando um olhar maroto para as amigas da sobrinha, que se encolhem, coradas". (BAGNO, 2006, p.32)
            Através dos diálogos entre os personagens dessa obra, ele sugere que fenômenos linguísticos, os quais acontecem de Norte a Sul do Brasil, não devem ser considerados “erros”, pois isso ocorre em uma nação onde milhões de pessoas cometem os mesmos "erros", ao mesmo tempo. Quando alguém fala “os óio”, em vez de “os olhos”, existe uma explicação linguística e logica dessa variante. Saber essa explicação significa um ponto de partida para acabar com muitos preconceitos linguísticos em todo o país. Muitas pessoas certamente parariam de sorrir do outro, daquele que erroneamente é tido como "quem não sabe falar português".


           

            Como parte da explicação do por que muita gente pronuncia as palavras de modo diferente, Bagno afirma que, desde quando o latim era usado para comunicação entre as pessoas, alguns tinham dificuldades em pronunciar o "L" nas palavras. A isso, ele chamou de "rotacização” do L nos encontros consonantais. Dessa maneira palavras do Latim, como "ecclesia" virou "igreja". A palavra "plaga" do latim tornou-se "praia". A palavra "sclavu" virou "escravo" em nossa língua portuguesa. Essas pessoas que tinham dificuldades em pronunciar o "L", do ponto de vista da época, elas cometiam "erros" que hoje são tidos como corretos. Isso explica a razão pela qual alguém fala hoje em dia “os óio”, em vez de “os olhos”. Isso também quer dizer que o que atualmente é visto como errado pode tornar-se certo daqui a alguns séculos, por exemplo.
            "Existe na língua portuguesa uma tendência natural em transformar em R o L dos encontros consonantais, e este fenômeno tem até um nome complicado: rotacismo. Quem diz broco em lugar de bloco não é “burro”, não fala “errado” nem é “engraçado”, mas está apenas acompanhando a natural inclinação rotacizante da língua". (BAGNO, 2006, p.32)
            Além de Bagno, Cavallari (2011) em seus estudos sobre bilinguismo e a vinda de estrangeiros para o Brasil, sobretudo no período de colonização, diz, "Os índios tinham dificuldades em pronunciar palavras portuguesas terminadas em consoantes e colocavam vogais entre as consoantes: daí mulher, colher e orelha terem se tornado "muié", "cuié" e "oreia". Tinham também dificuldade em pronunciar palavras que continham consoantes dobradas: é de sua dificuldade em pronunciar o "erre" que se originou a realização "pooorta", retroflexa, com a língua tocando o céu da boca". (CAVALLARI, 2011, p.275)
            Daí surgiu o dialeto caipira, do interior do estado de São Paulo, que também sofre preconceitos linguísticos. Contudo, de acordo com a autora, os falantes do "caipirês" da roça estão sempre criando palavras novas. Quando alguma palavra surge, o caipirês inventa, a partir da matriz da palavra, algo que tem sentido para ele. E muitos caipiras vivem suas vidas de maneira bilíngue, pois falam português com estranhos, pessoas desconhecidas e pessoas das cidades, porém, falam "caipirês" entre eles. Portanto, o caipirês, apesar de ser uma variante do português, é tido praticamente como outra língua.
            "Na visão preconceituosa dos fenômenos da língua, a transformação de I em R nos encontros consonantais como em Cráudia, chicrete, praca, broco, pranta é tremendamente estigmatizada e às vezes é considerada até como um sinal do “atraso mental” das pessoas que falam assim. Ora, estudando cientificamente a questão, é fácil descobrir que não estamos diante de um traço de “atraso mental” dos falantes “ignorantes” do português, mas simplesmente de um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão". (BAGNO, 1999, p. 40)
            A cerca da transformação do L em R (planta vira pranta, bloco torna-se broco), Bagno nos convence sobre esta tendência natural do português. Ele faz isso, principalmente quando recorre às mudanças sofridas pelo latim clássico, latim vulgar e posteriormente as línguas latinas, entre elas, o nosso português. Esses conhecimentos linguísticos são capazes de vencer o preconceito que temos em relação às variantes do português.
            GODINHO (ONLINE) também discute sobre preconceito linguístico, na língua inglesa, sobre o uso da palavra “ain’t”. Essa palavra é contração de "am not, is not, are not, has not e have not". Ele explica como a palavra "ain't" é usada na língua entre os americanos. Apesar de essa palavra ser usada diariamente por muitos falantes do idioma inglês, para os gramáticos tradicionais trata-se de um erro, pois os usos corretos são "you are not, I am not etc.". Contudo, mesmo com a resistência dos gramáticos, chamados de guardiões da língua, em aceitar esse uso tido como "errado", essa palavra foi inserida em um dicionário, Webster’s Third New International Dictionary.
            "Um dos melhores exemplos da escola descritiva é a edição de 1961 do Webster’s Third New International Dictionary cujo editor, Philip Gove, era da opinião de que distinções no uso da língua eram artificiais e elitistas. O resultado foi a inclusão de muitas palavras e expressões que os “guardiões” desaprovavam". GODINHO (ONLINE). Bem no centro da imagem abaixo podemos observar a palavra "ain't" e as construção gramaticais comuns na língua inglesa as quais são frequentemente substituídas pela palavra “ain’t”.

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            Em suas pesquisas, Godinho descobriu que "ain’t" tornou-se um vocábulo comum na época do Rei Charles II, há uns 300 anos e é usado até hoje. Mesmo assim, quando se fala ou escreve essa palavra, os gramáticos consideram um erro, isto é, inglês errado. O autor acredita que os falantes preferem o uso de "ain't" a construções gramaticais consideradas corretas porque é muito mais fácil de pronunciar "ain't" do que "aren’t" ou “have not”, por exemplo, além de soar muito mais natural para muitos nativos do idioma inglês. Contudo, a inclusão da palavra "ain’t" nesse dicionário, usada em muitas partes dos Estados Unidos, causou muitas contradições e atitudes preconceituosas.
            A palavra ain’t também é muito comum em filmes, musicas e é frequentemente usada em algumas variantes do “Black English” (inglês falado pelos negros norte-americanos). "Um bom exemplo encontra-se no primeiro filme falado, The Jazz Singer, de 1927, em que o cantor Al Jolson declarava, na maior alegria: “You ain’t heard nothin’ yet” (Vocês ainda não ouviram nada). Para desespero dos puristas, a frase estava toda errada (além da palavra ain’t, ela continha uma dupla negativa e deveria ser “You haven’t heard anything yet”), mas refletia o inglês de muitos na plateia". GODINHO (ONLINE).
            Em relação ao uso da lingua e como isso dve ser visto na escola, temos o mesmo ponto de vista de Alves (ONLINE). “É imprescindível que nos conscientizemos de que a língua é dinâmica e que está em constante processo de mudança e de evolução. Além disso, é preciso entender que existem diferenças de uso e que existem muitas alternativas em relação à regra única proposta pela gramática normativa. Respeitar a forma de falar/escrever das pessoas é igual a respeitá-las como seres humanos. ALVES (ONLINE).
            Acreditamos que o preconceito linguístico é também um preconceito social. São pessoas escolarizadas ofendendo ou acusando outros falantes de serem inferiores por não saber a norma culta da língua. Bagno nos explica que tudo começou por causa de fatores históricos, como, por exemplo, o nordeste deixa de ser o centro dos negócios no país. As regiões sul e sudeste passam ser o centro das atenções econômicas e com isso cria uma língua brasileira culta modelo. A partir de então o preconceito linguístico se instalou no país inteiro. A norma culta é relevante, sim, e deve ser ensinada nas escolas. Porém todas as outras variantes mereceriam seu lugar no ambiente escolar, seu devido valor e respeito, e, jamais dever ser motivo de preconceito.

Um outro texto interessante sobre empréstimo linguístico:  Empréstimos Linguísticos e Tradução

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística / Marcos Bagno, 15. Ed. — São Paulo: Contexto, 2006.
BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. Ed. Loyola, 1999
CAVALLARI, Juliana Santana - Uyeno, Elzira Yoko. Bilinguismo: Subjetivação e identificação nas/pelas línguas maternas e estrangeiras. Coleção: Novas perspectivas em Linguística Aplicada Vol. 9 Capinas, SP: Pontes Editores, 2011.
DEL PRETE, Almir - Psicologia das relações interpessoais: vivências para o trabalho em grupo, 8ª Ed., Petrópolis/RJ, Vozes, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
PRADO, Maria E. B. Brito. SILVA. Formação de educadores em ambientes virtuais de aprendizagem. Em Aberto, Brasília, v. 22, n. 79, p. 61-74, jan. 2009.

REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS:

ALVES, Thelma Panerai. Preconceito linguístico. http://www.libertas.com.br/libertas/preconceito-linguistico/ Acesso em 04 de março, 2015.
BEAUCLAIR, João. ESCOLA DE ONTEM, ESCOLA DE HOJE: DILEMAS E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA. http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=846 Acesso em 03 de março, 2015.
GODINHO, John D. O certo e o errado em inglês: preconceito linguístico em ação. http://www.inglesnosupermercado.com.br/o-certo-e-o-errado-em-ingles-preconceito-linguistico-em-acao/ Acesso em 03 de março, 2015.
LEÃO, Naiara. "Não somos irresponsáveis", diz autora de livro com "nós pega" http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/nao+somos+irresponsaveis+diz+autora+de+livro+com+nos+pega/n1596948804100.html Acesso em 01 de março, 2015.
WEBSTER, Merriam. http://www.merriam-webster.com/dictionary/ain't Acesso em 04 de março,2015.

MORAIS, J. F. S.
Sobre o autor:

Graduação em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Ibirapuera de São Paulo (2004). Especialista em Língua Inglesa pelo Centro Universitário Ibero-Americano (2008). Graduação em Pedagogia pela Universidade Nove de Julho (2012). Pós-graduado em Didática e Metodologia do Ensino Superior (2014) e tradução (Inglês e Português) pelo Centro Universitário Anhanguera de São Paulo (2016). Experiência no ensino de línguas desde 2000 e atualmente é professor em escola bilíngue e tradutor freelance.


Comments

  1. Uma leitura altamente recomendada para quem quer saber por que as pessoas falam os “óio”, em vez de “os olhos”, entre outros aspectos linguísticos. Saber a história da língua pode mudar muita visão preconceituosa sobre as diversas construções gramaticais e variantes linguísticas presentes em nosso português e em outras línguas no mundo inteiro.

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