Linguagem e Surdez: Perspectiva histórico-cultural de Vygotsky

Apresentaremos aqui um breve relato sobre alguns aspecto relacionados à raízes genéticas do pensamento e da linguagem, conceitos de aprendizagem de línguas com base na perspectiva vygotskiana de ensino e aprendizagem. Faremos também algumas considerações a respeito do que Vygotsky chama de funções mentais elementares (inferiores) e superiores. As funções mentais elementares são aquelas ações ligadas à inteligência prática, ou seja, as ações imediatas, espontâneas que não necessariamente exigem o esforço do pensamento verbal. Em outras palavras, são as ações que não exigem pensar, planejar e executar as ações previamente planejadas.
Por sua vez, as funções mentais superiores são aquelas ações mais complexas que requerem o uso avançado da memória e da criatividade do indivíduo. Ao atingir esse nível, o indivíduo deve ser capaz de raciocinar e fazer uso da cognição e habilidades em alto nível. Podemos dizer que nesses casos, as atenções acontecem com muita profundidades, como nas ações em que devemos resolver problemas mais complexos. Para desenvolver as funções mentais superiores, segundo Vygotsky, é necessário ter língua, o sistema de comunicação social convencionado, internalizado na mente do indivíduo.
De acordo com conceitos Vygotskianos discutidos em sala de aula, a criança quando nasce não tem pensamento ainda, porém isso não quer dizer que ela não tenha inteligência. Neste caso, o indivíduo já possui o que Vygotsky chama de “inteligência prática”, no entanto, esta capacidade trata-se de uma habilidade inata do ser humano, por exemplo, o ato de chorar da criança. O choro é uma resposta espontânea do bebê, pois nessa fase o pensamento ainda não é mediado pela linguagem. A aquisição do pensamento verbal ocorre posteriormente ao longo da vida do indivíduo.
No geral, a partir de um ano de idade, a criança começa a adquirir a fala, ou seja, a externalização da língua como sistema. Esse sistema de comunicação é convencionado e partilhado por uma dada sociedade. Por sua vez, a língua se difere da fala. A primeira é externa ao indivíduo e a segunda é a externalização pessoal da língua. Em outras palavras, podemos afirmar que a língua é social e a fala é individual. A língua como sistema é independente da nossa existência, enquanto a fala é um produção individual que difere entre indivíduos nas relações sociais.
Para Vygotsky (2010) a criança se desenvolve intelectualmente através de associações, por exemplo, quando ela aprende o conceito de conjuntos ou grupos os quais se assemelham fisicamente entre si. A esse respeito, Vygotsky explica que “O complexo se baseia em vínculos fatuais que se revelam na experiência imediata. Por isso ele representa, antes de mais nada, uma unificação concreta com um grupo de objetos com base na semelhança física entre eles, Daí decorrem todas as demais peculiaridades desse modo de pensamento. A mais importante é a seguinte: uma vez que esse complexo não está no plano do pensamento lógico-abstrato mas no concreto-fatual, ele não se distingue pela unidade daqueles vínculos que lhe serve de base e são estabelecidos com a sua ajuda.” (VYGOTSKY, 2010, p. 49).
Para o autor, cada coisa está relacionada ao todo, pois se assemelham entre elas. Sendo assim, quando a criança aprende uma língua, as palavras (signos) aos poucos passam a ser relacionadas (de nomes próprios) aos nomes de família, pois como pondera Vygotsky, a criança começa a nomear objetos como se cada um pertencesse à famílias diferentes. É assim que a criança organiza o seu pensamento. Ao discorrer sobre as raízes genéticas do pensamento e da linguagem, Vygotsky afirma que: “O principal fato com que nos deparamos na análise genética do pensamento e da linguagem é o de que a relação entre esses processos não é uma grandeza constante, imutável, ao longo de todo o desenvolvimento, mas uma grandeza variável. A relação entre pensamento e linguagem modifica-se no processo de desenvolvimento tanto no sentido quantitativo quanto qualitativo. Em outros termos, o desenvolvimento da linguagem e do pensamento realiza-se de forma não paralela e desigual. As curvas desse desenvolvimento convergem e divergem constantemente, cruzam-se, nivelam-se, em determinados períodos e seguem paralelamente, chegam a confluir em algumas de suas partes, para, depois, tornar a bifurcar-se.” (VYGOTSKY, 2010, p.42-43).
De acordo com essas evidências, o processo de realização do pensamento verbal trilha caminhos extremamente complexos até atingir sua formação propriamente dita. Vygotsky (2005) comenta sobre a teoria de Piaget no que diz respeito à linguagem e o pensamento da criança. “A necessidade de verificar nosso pensamento – isto é, a necessidade da atividade lógica - surge mais tarde. Essa demora é de se esperar, diz piaget, uma vez que o pensamento serve primeiro a satisfação imediata, muito antes de procurar a verdade; a forma mais espontânea de pensamento é o brinquedo ou a imaginação mágica, que faz com que o desejável pareça possível de ser obtido.” (VYGOTSKY, 2005, p. 15-16).
Com base nos apontamentos de Vygotsky, como também de Piaget, podemos dizer que essa atividade lógica sugere que o pensamento verbal aparece depois, ou seja, quando a criança amadurece suas capacidades cognitivas. Esse amadurecimento contempla o que Vygotsky chama de funções mentais superiores que se desenvolvem ao longo da vida do indivíduo nos mais diversos contextos e interações sociais. Como bem pondera o autor, o desenvolvimento humano como também linguístico estão diretamente ligados ao convívio social. Para Vygotsky, o ambiente social potencializa o desenvolvimento cognitivo através da interação com outros indivíduos.  
Vygotsky (2005) discorda de alguns aspectos da teoria de Piaget, sobretudo, o papel da atividade da criança na evolução dos processos mentais. Para o autor, Piaget não considera a fala egocêntrica da criança. Ele afirma que esse aspecto está diretamente ligado ao modo que a criança lida com o que a cerca. Essa interação da criança com o mundo é o que desenvolve sua cognição e, consequentemente, sua inteligência. Nessa interação com o ambiente, a criança passa da fala egocêntrica às ações planejadas à medida que as atividades tornam-se mais complexas. É exatamente nesse processo que a criança passa a usar, após as funções mentais elementares, as funções mentais superiores. Em suma, Vygotsky critica Piaget por não considerar, na formação do pensamento da criança, a situação social e a interação com os diferentes ambientes onde a criança vive.
Vygotsky (2005) também analisa aspectos sobre o desenvolvimento da linguagem sobre  a ótica de Stern cujas considerações sobre a raízes da fala, segundo ele, são três: a tendência expressiva, social e intencional. Esta última, somente, é uma capacidade própria do ser humano. As outras são observadas nos animais, porém eles não são capazes de realizar atividades puramente intencionais, por exemplo, o ato de a longo prazo planejar ações futuras. Vygotsky pondera que o desenvolvimento do pensamento na criança é semelhante ao modo que isso ocorre nos animais, porém, ao contrário do que acontece nos animais, a criança transcende nas habilidade cognitivas. Vimos que isso é parte integrante do processo da atividade racional, adquirindo inteligência, por assim dizer, a partir das ações intencionais da criança, e ainda são incipientes; e que a fala egocêntrica vai, progressivamente, tornando-se apropriada para planejar e resolver problemas, à medida que as atividades da criança tornam-se mais complexas”. (VYGOTSKY, 2005, p. 27).
Entendemos que o pensamento da criança se desenvolve de forma gradual. Nas palavras de Vygotsky, “A interpretação dada às primeiras palavras da criança é a pedra de toque de todas as teorias da fala infantil; é o ponto de convergência onde todas as principais tendências das modernas teorias da fala se encontram e se cruzam. Poder-se-ia dizer, sem exagero, que toda a estrutura de uma teoria é determinada pela tradução das primeiras palavras da criança.” (VYGOTSKY, 2005, p. 36). Ao contrário de Stern, Vygotsky acredita que mesmo as primeiras palavras da criança já carregam intenções da mesma maneira que isso ocorre na fala dos adultos. Além da fala, o autor considera os gestos que medeiam a fala e o significado das palavras. Tudo isso, juntamente com a consideração da interação do indivíduo com o meio ambiente, deve ser analisado (fatores sociais e ambientais) no desenvolvimento da fala. Ao contrário de Vygotsky, Stern considera relevantes para o desenvolvimento da fala apenas fatores orgânicos interiores.
Vygotsky (2005) pondera que: “Essa concepção idealista, monadista, da pessoa individual, leva naturalmente a uma teoria que vê a linguagem como enraizada na teleologia pessoal - daí o intelectualismo e a tendência antigenética da abordagem de Stern aos problemas do desenvolvimento linguístico.” (VYGOTSKY, 2005, p. 39).” Como aponta Vygotsky, não só a fala como também nossa capacidade de desenvolver intelectualmente, a inteligência, são determinadas por fatores sociais e ambientais. Sem dúvida Stern teve suas razões ou limitações para considerar apenas fatores orgânicos interiores. Acreditamos que esses fatores também são de suma importância para o desenvolvimento da fala e deve ser integrado aos fatores sociais e culturais, pois se complementam no desenvolvimento da linguagem.
Em outra de suas obras, Vygotsky (2010) discute sobre estudos experimentais do desenvolvimento dos conceitos e nos fornece alguns apontamentos referentes a esse assunto. “A própria linguagem não se funde em vínculos puramente associativos, mas requer uma relação essencialmente nova, efetivamente característica dos processos intelectuais superiores entre o signo e o conjunto da estrutura intelectual. Até onde se pode supor com base no estudo da psicologia do homem primitivo e do seu pensamento, a filogênese do intelecto, ao menos em sua parte histórica, não revela aquela via de evolução que Thorndike admitia existir entre as formas inferiores e as formas superiores, passando pelo aumento quantitativo das associações.” (VYGOTSKY, 2010, p. 48).
Em seu modo de ver, a evolução biológica do intelecto não tem, necessariamente, relação entre evolução do nível de pensamento e associações. Vygotsky (2005) argumenta sobre as raízes genéticas do pensamento e da linguagem. “A linguagem não depende necessariamente do som. Há, por exemplo, a linguagem dos surdos-mudos e a leitura dos lábios, que é também interpretação de movimentos. Na linguagem dos povos primitivos, os gestos têm um papel importante e são usados juntamente com o som.”  (VYGOTSKY, 2005, p. 47). Em outras palavras ele nos diz que a linguagem não depende do som para acontecer. Devem ser considerados quaisquer signos funcionais que correspondam a fala (som). Exemplo disso é a Libras, a Língua de Sinais Brasileira, através da qual a comunidade surda é capaz de se comunicar e expressar pensamentos extremamente complexos (pensamento verbal) e independem da produção de sons (fala), pois, através da Libras é possível evidenciar as operações mentais dos usuários dessa língua.
Por se tratar de uma língua gestual e visual a forma como o pensamento é externalizado difere das dos ouvintes. A aprendizagem da Libras pelas crianças surdas também deve ser diferente da maneira como as crianças ouvintes aprendem a língua oral. As crianças surdas aprendem melhor através da Libras. Já foi comprovado que até mesmo os animais que ouvem aprendem melhor por meio de recursos linguísticos visuais, como no caso dos chimpanzés estudados por Yerkes, como aponta Vygotsky.  Podemos relembrar, a seguir, o exemplo recente da eficácia desses recursos linguísticos no ensino de línguas de sinais. Recentemente, alguns vídeos e informações., notícias sobre o gorila que se comunicava com eficiência por meio de língua de sinais, circulavam nas redes sociais e nos principais telejornais do país.
“A fala humana certamente originou-se do mesmo tipo de reações vocais expressivas. Segundo, os estados afetivos que produzem muitas reações vocais nos chimpanzés são desfavoráveis ao funcionamento do intelecto.” (VYGOTSKY, 2005, p. 50). Com base na análise de Vygotsky nas descobertas sobre os chimpanzés e macacos, a existência do som para promover o pensamento é desnecessária, pois, a capacidade de expressar pensamento ocorre independente desse recurso linguístico. Ele conclui que o pensamento e a fala têm origens diferentes. No desenvolvimento da fala da criança existe a presença da “inteligência prática” ou seja, não existe pensamento verbal ainda, por exemplo, o choro da criança e o balbucio dos sons ou palavras.
Por sua vez, a evolução do pensamento se dá quando a criança cresce e interage com adultos ou com crianças maiores. É nesse intercâmbio social e nos mais diferentes ambientes de interação que o desenvolvimento do pensamento verbal ocorre. Vygotsky sugere que a evolução do pensamento e da fala se cruzam e se alimentam quando a criança completa mais ou menos dois anos de vida. A partir de então, a fala é produzida por meio do raciocínio, que podemos chamar de pensamento verbal. A fala como outras operações mentais, se desenvolve, segundo Vygotsky, por meio do uso de signos. Na concepção do autor, esses signos podem ser o ato de contar ou de memorizar algo. Em outras palavras, essa referência ao signo tem a ver com a habilidade usar meios que facilitam a memorização de dados e informações. Vygotsky chama essa habilidade de “memorização mnemônica”.
Suas descobertas evidenciam que as operações mentais se desenvolvem em quatro estágio: “O primeiro é o estágio natural ou primitivo, correspondendo a fala pre-intelectual e ao pensamento pre-verbal, quando essas operações aparecem em sua forma original, tais como evoluíram na fase primitiva do comportamento." (VYGOTSKY, 2005, p. 57). No segundo estágio, ele acrescenta que a criança começa exercitar sua inteligência prática. No terceiro estágio, a criança passa a usar signos exteriores para resolver problemas. A criança usa, por exemplo, os dedos como recursos auxiliares nos cálculos matemáticos ou para memorizar informações. Nessa fase do desenvolvimento´a fala ainda é egocêntrica. No quarto estágio, a criança já começa o raciocínio lógico mental. Em nosso entendimento, os dois primeiros estágios referem-se ao terreno da inteligência prática onde o pensamento verbal ainda não existe. Enquanto os terceiro e quarto estágios, quando a criança se expressa por meio do raciocínio e fala, representam a manifestação do pensamento verbal propriamente dito.
“Descobrimos que também na criança as raízes e o curso do desenvolvimento do intelecto diferem dos da fala – inicialmente, o pensamento é não-verbal e a fala, não-intelectual.” (VYGOTSKY, 2005, pp. 60-61). As descobertas de Vygotsky apontam que os animais possuem as mesmas capacidades intelectuais do ser humano, pois são capazes de pensar, mesmo que seja em nível elementar. Os animais pensam e alguns até falam (papagaio), porém, apenas os seres humanos são capazes de atingir os níveis das funções mentais superiores.  
Levando-se em consideração os aspectos discutidos, concluímos que, Para Vygotsky (2005), a fala interior passa por mudanças estruturais e funcionais até tornar-se estruturas básicas de pensamento, por isso segundo ele, o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem e as experiências da criança no meio sócio-cultural. Isso propicia o desenvolvimento da fala interior e posteriormente o raciocínio o qual ocorre por meio do intercâmbio social, um processo sócio-histórico, pois não é possível de acontecer de forma natural e inata do pensamento e da fala.
VYGOTSKY L. S. Formação Social da Mente. São Paulo Martins Fontes, 2010.

VYGOTSKY L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo Martins Fontes, 2005.

MORAIS, J. F. S.
Sobre o autor:

Graduação em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Ibirapuera de São Paulo (2004). Especialista em Língua Inglesa pelo Centro Universitário Ibero-Americano (2008). Graduação em Pedagogia pela Universidade Nove de Julho (2012). Pós-graduado em Didática e Metodologia do Ensino Superior (2014) e tradução (Inglês e Português) pelo Centro Universitário Anhanguera de São Paulo (2016). Atualmente em curso de pós graduação em tradução e Interpretação em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) no Instituto Singularidades em São Paulo. Experiência no ensino de línguas desde 2000 e atualmente é professor em escola bilíngue e tradutor freelance.

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