Reflexões sobre a Escola da Ponte
www.celsovasconcellos.com.br
[Texto publicado na Revista de
Educação AEC n. 141 out./dez.2006]
Reflexões sobre a Escola da Ponte
Resumo
Este artigo faz uma reflexão
crítica sobre a experiência da Escola da Ponte, em Vila das Aves, Portugal.
Hoje com uma projeção mundial, o Projeto Fazer a Ponte, nasceu há cerca de 30
anos e traz efetivamente elementos bastante inovadores em termos de organização
pedagógica, comunitária e administrativa. O autor analisa as relações
dialéticas entre as estruturas objetivas e subjetivas, em especial, as pessoas
e o currículo. Apresenta elementos do cotidiano, bem como alguns dos seus
dispositivos pedagógicos.
Palavras-Chave
Inovação educacional.
Educação. Portugal. Currículo. Dispositivos Pedagógicos. Cotidiano escolar.
Avaliação. Formação humana. Gestão.
As
preocupações de fundo deste texto são duas: primeira, entender melhor o Projeto
Fazer a Ponte, aprender, tirar lições. Segunda, dar, se possível, alguma
contribuição para sua sustentabilidade e para seu avanço.
Organizei a
exposição a partir de perguntas que amigos e professores, com quem partilhei a
viagem[2], fizeram e que são
disparadores da reflexão (um pouco no estilo mesmo da alma da Ponte: perguntar,
perguntar, perguntar).
Talvez as
questões, em alguns momentos, esbarrem em aspectos mais pessoais, mas não
podemos esquecer o alerta que nos faz outro patrício,
o prof. Antonio Nóvoa: grande parte da pessoa é o professor e grande do
professor é a pessoa.
1.Por quê você viajou para a Escola da Ponte?
Desde 2001,
depois da publicação do livro A Escola
com que sempre sonhei, comecei a ouvir referências à Escola da Ponte[3]. Comprei o livro, por ser
admirador de Rubem Alves, mas na época não o li. A partir de 2004, aumentaram
as referências; o professor José Pacheco concede entrevistas a várias revistas
de educação brasileiras. Em julho de 2004, numa atividade no Pueri Domus,
conheci José Pacheco e assisti, pela primeira vez, o vídeo sobre a Ponte. Ver
aquelas crianças de 7, 8, 10 anos participando da Assembléia, por eles
coordenada, perguntando com firmeza a todo momento “Por quê?”, “Por quê?”,
argumentando, num clima de profundo respeito, deixou-me profundamente
intrigado. Neste momento nasceu o desejo de “ver de perto”.
Depois da
experiência que passei, como pai participante do Conselho de Escola da escola
municipal onde meus filhos estudavam, com Paulo Freire à frente da Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo, em que a proposta de reorientação curricular através do Tema Gerador, ao fim e
ao cabo, tinha sido reduzida, p. ex., ao professor de Ciências trabalhar a
conta de luz junto com o professor de Matemática, estava convencido que uma
mudança maior na escola não seria para tão logo. A Escola da Ponte reacendeu em
mim a utopia de um outro currículo, a perspectiva mais próxima de um novo
histórico-viável.
2.E o que viu na Ponte?
É muito
difícil expressar em palavras toda a riqueza da experiência. O que mais chama a
atenção na Ponte não são as instalações, os recursos materiais e nem mesmo os
interessantes dispositivos pedagógicos, mas as pessoas, a começar pelos alunos
até o fundador do projeto, passando pelos amigos da Ponte[4].
O projeto
tem sua centralidade na pessoa. A Ponte é uma escola em que a pessoa é
fundamento e finalidade do trabalho educativo. Lá, os alunos aprendem a ser pessoas e a verem os outros
como pessoas, por isto, segundo José Pacheco, há uma preocupação primeira
com o perfil dos educadores: A
competência básica dos professores que contratamos será o ser pessoa. Onde não
existir uma pessoa, não será possível colocar um profissional professor.
De um modo
geral, professores e alunos passam parte significativa de seu tempo na escola.
Independentemente do currículo, os alunos estabelecem vínculos entre si, criam
formas de relacionamento. Alunos e professores buscam estratégias de
sobrevivência em relação às exigências da escola, desenvolvem suas culturas. Na
Escola da Ponte, estes elementos (convivência, conflitos, descobertas, formas
de ser), ao invés de ficarem à margem, são estruturantes do currículo.
“Perde-se”, investe-se muito tempo nisto. Os orientadores educativos são
convidados a reverem sua cultura pessoal e profissional. O currículo
efetivamente está organizado para contemplar a pessoa, a partir de seu
cotidiano. Centralidade na pessoa implica reconhecer que a vida é agora; é
certo que na tensão entre o passado (memória) e o futuro (projeto) (cf. Hannah
Arendt), mas no presente. O cotidiano é tema constante (ver, por exemplo, os
dispositivos Acho bem e o Acho mal, a Assembléia, a Caixinha dos
Segredos, a Reunião de Professores)
O universo
escolar, os rituais, os dispositivos, não são absolutamente estranhos aos
alunos, como em muitas escolas. Pelo contrário, eles dominam seu sentido, a
ponto de poderem explicar a qualquer visitante que lá chega. Num certo momento
da apresentação da escola, dei-me conta da cena: 5 adultos em cima do menino
Roberto; ansiosos, queríamos saber tudo da escola, e ele com paciência ia
explicando.
Ao
analisarmos o conteúdo do Projeto Educativo da Escola da Ponte, constatamos que
é relativamente simples (existem projetos de escolas brasileiras muito mais
sofisticados do ponto de vista teórico ou ousados quanto aos valores que se
propõem). A grande diferença é que lá o projeto se efetiva, “sai do papel”, não
de forma espontânea, mas a partir do compromisso das pessoas e das mediações
pedagógicas, comunitárias e administrativas desenvolvidas.
As pessoas
que estão na Ponte teriam alguma qualidade especial, seriam de uma essência diferente, fruto de alguma mutação? Acho que não é o caso, embora
existam talentos excepcionais. Nas palavras de Pacheco: É uma escola feita por seres humanos normais, tão iguais aos outros,
mas que se transcendem, que se transformam e que reelaboram sua cultura pessoal
e sua cultura profissional. Este é o segredo da Ponte. Têm coragem de se
colocar em causa e a trabalhar com os outros. E ver nos outros alguém que os
pode ajudar e a quem podem ajudar. É uma cultura de solidariedade.
Para
entender a Ponte, creio que não podemos esquecer do peso da estrutura
curricular, que é outro aspecto que chama a atenção: não haver “salas de aula”,
professores e alunos isolados, “aula”, horários fragmentados, séries,
reprovação.
Podemos
dizer que o projeto está, sobretudo, nas pessoas, porém também na estrutura
curricular. Assim como não há estrutura que funcione sem o ser humano, não há
estrutura neutra.
O que fica
claro com a crise que a escola estava vivendo, no momento em que a visitamos, é
o quanto o projeto depende das pessoas, que não adianta existirem dispositivos,
reorganização dos espaços e tempos se não houver pessoas que sejam coerentes
com o projeto, que vivam os valores que o projeto propõe (ex.: de um lado,
alguém se sentir dono do projeto, diminuir a participação do coletivo nas
decisões, diminuir a formação dos educadores, deixar a vaidade subir à cabeça;
de outro, não se exercer suficientemente a autonomia, deixar-se levar, não se
posicionar, não questionar). Partilhar de um dispositivo educativo é partilhar,
antes de tudo, do sentido subjacente a ele, da visão de mundo, dos
pressupostos.
Há,
portanto, uma articulação dialética entre Condições
Objetivas (Materiais: número de alunos, número de orientadores educativos,
horário de funcionamento da escola; Políticas/Estruturais: inúmeros
dispositivos pedagógicos) e Condições
Subjetivas (pessoas inquietas, que não se conformam com o que está dado,
que se questionam, comprometidas com uma clara matriz axiológica -
solidariedade, autonomia, responsabilidade e democraticidade).
Muitas
vezes, temos a idéia de que a escola que está aí (não todas as escolas, porém o
modelo dominante) sempre foi assim. Na Ponte, percebemos as várias modalidades
de interação professor-aluno e de aprendizagem: estudo individual, ensino mútuo
(entre alunos), ensino simultâneo (aula direta), ensino individual (professor
atendendo um aluno), ensino coletivo (vários professores atuando ao mesmo tempo
na aula direta).
3.Com índices tão alarmantes de
não-aprendizagem, tanto no Brasil quanto em Portugal, não seria melhor nos
preocuparmos primeiro com isto?
Será que uma
das causas fundamentais da não-aprendizagem não estaria justamente no fato de
considerarmos o aluno apenas do ponto de vista acadêmico e não o todo de sua
pessoa? Como se sentiria o filho cuja
mãe só se preocupasse com sua roupa? Estaria muito bem vestido, mas e suas
outras necessidades (alimentação, segurança, afeto, sentido de vida)?
Analogamente, como será que se sentem os alunos, quando só nos preocupamos com
o domínio dos saberes escolares? Na Escola da Ponte, a aprendizagem de
conteúdos acadêmicos (instrucionais, conceituais) não é o foco principal e os
alunos têm se saído muito bem nos Exames Nacionais. Não é de fazer pensar?
4.Aqui no Brasil não existem práticas
interessantes também?
Sim; conheço
algumas; participei e, de alguma forma, participo de outras. Quero conhecer
mais. Precisam se dar mais a conhecer. Todavia, o que percebo é que são
práticas fragmentas e efêmeras. São ações isoladas, de um ou outro professor ou
de um segmento da escola, não envolvendo a escola como um todo. Duram alguns
anos apenas, talvez justamente por dependerem muito de uma única pessoa, por
serem localizadas, por não envolverem toda a escola e nem romperem com a alma
da escola burguesa, a lógica disciplinar instrucionista, classificatória e
excludente. Aqui, parece-me, há um elemento decisivo: não se trata só de
criarmos relações humanas significativas, mas de mexermos na própria estrutura
alienante da escola.
Por uma
série de fatores, nas últimas décadas, no Brasil não se deu muita ênfase ao
trabalho no chão da escola.
5.Como assim?
É uma
questão muito complexa. Faço apenas uma aproximação. O desenvolvimento da
pedagogia crítica entre nós (décadas de 70 e 80, do século XX), ao contrário de
Portugal, deu-se em pleno regime militar, o que acabou por dar destaque à luta
política mais geral e não tanto às práticas pedagógicas concretas no interior
da escola. Podemos lembrar os famosos embates nos anos 80 entre competência
técnica e compromisso político, como se fossem dimensões separáveis. O educador
francês Georges Snyders tem uma colocação sobre o docente que abraça a causa
democrática que acho perfeita: o drama do professor é fazer a revolução e dar
aula amanhã cedo. Parece-me que entre nós rompeu-se um pouco esta dialética,
tendo sido priorizado, entre os educadores progressistas, o pólo da
transformação social em detrimento da prática cotidiana em sala de aula.
Há ainda um
problema de fundo que é um certo desprezo histórico da universidade em relação
à escola básica (isto, evidentemente, não só no Brasil). Este distanciamento,
esta falta de compromisso com o fazer concreto da escola, é um campo fértil
para a formação na academia das igrejinhas
em torno das elaborações teóricas (que acabam se refletindo nos modismos que
atingem as escolas).
Uma prática
comum nas redes de ensino é levar para os órgãos centrais aqueles professores
que se destacam pelo bom trabalho na escola. A intenção é boa —possibilitar que
mais escolas se beneficiem daquele talento—, porém muitas vezes o que se acaba
tendo é mais um educador sufocado na inércia e burocracia da administração.
Um dos
grandes méritos do prof. José Pacheco foi justamente a fidelidade ao amor pelas
crianças, não deixando de conviver e trabalhar com elas ao longo de toda sua
vida, desde o momento em que decidiu ser professor (mesmo se especializando,
pós-graduando, atuando no ensino superior).
6.A experiência da Ponte não teria uma carga
conservadora, na medida em que busca uma saída "no seu quintal”, ao invés
de se comprometer com a transformação do sistema de ensino português como um
todo?
Este amor
pelas crianças a que me referi não é piegas; é uma das formas de manifestar o
amor pela humanidade. Conheço o José Pacheco há apenas 2 anos, mas, por tudo
que vi, com certeza é um homem de esquerda, na melhor acepção do termo
(compromisso com a justiça, com a liberdade, com a radical solidariedade, fiel
ao sonho de uma sociedade que tenha lugar para todos).
Exigir
primeiro a mudança das condições, para que então se comprometer com a mudança
da escola, não seria ser revolucionário de fachada, de “final de semana”? Lembremos o óbvio: quando as condições
estiverem transformadas, não haverá mais necessidade de sujeitos de
transformação!
Nos dias correntes, em que há tanta dor, tanto sofrimento, é que precisamos de
pessoas que se comprometam com a transformação.
Além de toda
a diferença que faz para as pessoas que lá estudam e trabalham, a experiência da
Ponte abriu a possibilidade para que as escolas possam ter seu contrato de
autonomia com o Ministério da Educação (e isto não é pouca coisa), influenciou
a reforma educativa portuguesa (ex.: inserção no currículo do momento de
assembléia de turma), e tem sido fator de desassossego e inspiração para
educadores de todo o mundo.
Quando fazia
o mestrado em educação, ficava sugerido por alguns autores que líamos que não
precisávamos nos preocupar muito com as concepções da chamada Escola Nova
(Dewey, Montessori, Decroly, etc.), pois seriam “conservadoras”. É muito
interessante quando confrontamos esta visão com a vivência que Pacheco teve e
que foi um dos fatores, pelo que entendi de seu relato, que o levou a decidir
pela educação como atividade profissional. Ao visitar uma escola, viu as
crianças trabalhando absolutamente concentradas. Pensou consigo: “Foram bem
ensaiadas”. Em seguida, deu uma desculpa qualquer e voltou rapidamente para a
sala e lá encontrou as crianças tranqüilamente em suas atividades. Isto o
questionou fortemente, pois vislumbrou uma outra possibilidade para o ensino.
Era uma escola montessoriana. Qual seja, na gênese do projeto revolucionário da
Ponte podemos encontrar a contribuição de alguém que era tida, pelos mentores
revolucionários brasileiros, como liberal (não libertadora ou crítica).
7.Você está negando a concepção dialética de
educação que parece pautar seus escritos?
Não.
Considero-a uma grande referência teórico-metodológica. Só não podemos esquecer
de dialetizar a dialética, a fim de não torná-la um fetiche, um tabu, uma
grelha à qual a realidade teria de se encaixar.
O ser humano
tem uma disposição natural para conhecer. Existem, no entanto, muitas coisas
para serem conhecidas. Cada um tem uma imagem a preservar (para si e para os
outros); ninguém gosta de se sentir incompetente. A desqualificação de um
conjunto de informações é uma forma de o sujeito sentir-se justificado,
tranqüilo. Portanto, descartar Montessori por ser escolanovista (assim como
descartar experiência da Ponte) é uma forma de sobrevivência psicológica.
Na vida
humana concreta, temos de descartar blocos, setores todos de informação. Ao
fazer isto, podemos perder elementos que são fundamentais para nossa
existência. Este é um dos motivos da escola, do mestre: apontar aquilo que,
numa determinada cultura, considera-se fundamental para o desenvolvimento pleno
da pessoa.
8.Que outros aspectos chamou sua atenção na
visita à Escola da Ponte?
lPresença do Programa no
cotidiano.
lEstudo individual dos alunos.
lNão-centralidade do trabalho
com projeto.
lAlunos escrevem muito e com
significado (ex.: Plano da Quinzena, Plano do Dia, Eu já sei, Preciso de Ajuda,
Acho Bem, Acho Mal, Caixinha dos Segredos, etc.).
lVisitantes como parte do
currículo; abertura da intimidade do cotidiano escolar. Por outro lado, a
presença dos visitantes com certeza fortalece a auto-estima dos alunos e
professores, além de ser uma espécie de avaliação externa constante, pois, como
afirma o prof. José Pacheco, os olhares
alheios ajudam-nos a repensar, a corrigir, a reinventar.
lNa Assembléia, na discussão dos
problemas, sempre se buscava soluções entre os alunos – “O que podemos fazer?”
(ao invés de se ficar remetendo a solução para o outro, para a equipe escolar).
lComputador, ligado à internet,
incorporado ao ambiente educativo.
lEsquema claro de trabalho com
as dúvidas e dificuldades: primeiro individual, depois colegas e só por último
com o professor.
lNão há ruptura radical entre
recreio e estudo: o clima leve, de alegria, de participação, continua, embora
com atividades totalmente diferentes.
9.Como é esta questão do Programa na Escola da
Ponte?
O prof.
Rubem Alves, um dos grandes responsáveis pela divulgação da Ponte, afirma em
seus textos (li seu livro depois que voltei da viagem) e conferências que lá
não existe a preocupação com a matéria
prevista nos programas oficiais. Não foi isto que observei (é sempre bom
lembrar que cada um de nós fala da Ponte que viu, que tem, certamente, uma base
na realidade, mas também na sensibilidade e representações pessoais). Pelo
contrário, o programa lá, embora não nuclear, é vivo e operante.
Tal fato,
aliás, é explicitado pelo próprio José Pacheco e por outros educadores que
conhecem a Ponte. No caso do prof. Pacheco, fica muito claro que ele não fala
disto com orgulho, uma vez que seu sonho também é chegar um dia em que não se
coloque mais esta questão de um programa a cumprir. Todavia, pelos estudos e
diálogos que estabeleci, a presença do programa tem sido uma marca da Ponte.
Os
objetivos, advindos do Currículo Nacional (apenas traduzidos numa linguagem
mais acessível), estão expostos em todos os murais da escola, por áreas. No Plano da Quinzena, um dos itens a ser
preenchido pelo aluno é “Quais as áreas/objectivos que me podem ajudar na
realização do projecto?”
Em Sezim
(7º, 8º e 9º anos), por exemplo, na área de Língua Portuguesa estão registrados
nada mais nada menos do que 235 objetivos, entre os quais reconhecer aférese; síncope; apócope; prótese; epêntese; paragoge;
assimilação; vocalização; sonorização; palatalização; crase; sinérese, que não são, a meu ver, objetivos propriamente emancipatórios.
Este a meu
ver é um aspecto muito importante porque aproxima a Escola da Ponte das escolas
e educadores concretos que temos, na medida em que contempla uma de suas
grandes preocupações na prática educativa (o bendito programa), assim como revela a relatividade da ênfase aos
conteúdos conceituais (eles não são nucleares e os alunos aprendem).
10.Mas, então, o que muda em relação aos
Programas de nossas escolas?
Primeira
grande diferença: o programa não é fim. O
objetivo dos objetivos é a felicidade. E isto não é mera retórica (como em
muitas escolas). Toda a estrutura do currículo, pautada nos dispositivos
pedagógicos, organiza o cotidiano em outras bases, de tal forma que o programa
não é nuclear.
Segunda
grande diferença: em função dos dispositivos, o aluno escolhe em que momento
vai estudar cada objetivo! Não há uma ordem preestabelecida, padronizada. Ao
contrário, há liberdade de escolha. O educando sabe que, por exemplo no
Aprofundamento, tem 3 anos para dar conta daqueles 235 objetivos de Língua
Portuguesa, cabendo a ele, com o acompanhamento do Professor Tutor, gerenciar
seu desenvolvimento. O fato de poderem escolher os objetivos que querem estudar
é muito destacado nas falas dos alunos, constituindo-se, a meu ver, em forte
fator mobilizador para a aprendizagem.
Terceira
diferença: estão expostos e os alunos sabem sua origem (currículo nacional).
Isto também tem influência na motivação dos alunos, pois parece superar a
situação de constrangimento quando o programa vai saindo “da cabeça do
professor”.
11.Conte-nos um pouco sobre o que viu na escola
da Ponte em termos de Avaliação.
Na Ponte, a
avaliação não se destaca, não chama a atenção, muito embora esteja
absolutamente presente. Nos principais dispositivos pedagógicos ali
desenvolvidos ou aplicados, a avaliação está presente.
Por exemplo:
a Assembléia da escola (toda
sexta-feira, à tarde) tem sua origem na avaliação que os alunos fazem do seu
cotidiano, expressa, por sua vez, nos dispositivos do Acho bem e do Acho mal
(cartazes que ficam nos murais e os alunos vão registrando). Na Reunião de professores (quartas-férias,
à tarde), os professores avaliam com afinco o Projeto e buscam formas de
melhorias. No Debate todos os dias os
alunos, entre outras coisas, avaliam o dia de trabalho. Os portfólios também
fazem parte da paisagem cotidiana da sala de aula; eles utilizam destas pastas
A-Z, com sacos plásticos, onde ficam os planos quinzenais e as principais atividades
que cada aluno desenvolve.
A observação
é uma prática constante de avaliação por parte dos professores, sobretudo em
termos de valores e atitudes (sem estabelecer ruptura com a avaliação de
conhecimentos). Como não existe observação neutra, ela é pautada na matriz
axiológica da Ponte: solidariedade, responsabilidade e autonomia.
A
auto-avaliação é um dos pontos fortes da avaliação na Escola da Ponte, estando
também presente em vários dispositivos: Eu
preciso de ajuda (aluno, depois de ter buscado sozinho e com os colegas de
grupo, não sanou as dúvidas e sinaliza para o professor e demais colegas); Eu já sei (aluno, tendo convicção de seu
aprendizado de determinado objetivo, sinaliza para o professor que está pronto
para ter uma avaliação mais formal – que também existe na Ponte, mas que é algo
muito tranqüilo, pois não serve para classificar, e sim para qualificar).
Merece destaque o Plano da Quinzena;
a primeira parte é propriamente o plano a ser desenvolvido na quinzena
(atividades coletivas da escola, do projeto do grupo e individual); a segunda
parte começa com uma exigente auto-avaliação: O que aprendi nesta quinzena? O que mais gostei de aprender nesta
quinzena? Outros aspectos que ainda gostava de aprofundar neste projecto; Mas
ainda não aprendi a... Porquê? Outros Projectos que gostaria de desenvolver.
Na última folha vem ainda as Informações
do Professor Tutor, as Observações do
Pai/Mãe/Encarregado de Educação e as Observações
do Aluno.
12.Que lições você tira da Escola da Ponte?
lUma outra escola é possível já.
lA pessoa como núcleo, como
fundamento e como centro do trabalho escolar.
lQualidade humana do grupo:
sensibilidade, solidariedade, autonomia, responsabilidade, competência (sólida
formação nas Ciências da Educação). Inquietação, busca, não ser indiferente,
perguntar pelo sentido, desassossego e desassossegar (fraternas provocações).
lSer radical, ir à raiz, mais do
que ficar administrando a crise provocada por uma estrutura escolar arcaica.
lDesenvolver a arte de
trapacear: não ter pudor em mentir para o opressor, a fim de poder dar
continuidade ao trabalho inovador.
lConstruir currículo e
dispositivos pedagógicos que dêem sustentação concreta ao projeto, para não
ficar, a todo momento, tendo de “reinventar a roda”, ou na dependência do
“humor” de cada um – educadores e educandos.
lRelatividade da metodologia de
ensino e dos conteúdos conceituais; não fechar num enfoque teórico, não
dogmatizar.
lImportância de uma liderança
pedagógica.
lEnvolvimento dos pais desde o
início com o projeto de inovação pedagógica.
Por outro
lado, reforça e re-significa algumas convicções que já tinha, como por exemplo:
lA importância da opção pelo
magistério; querer ser professor; estar inteiro na atividade.
lAcreditar em si, acreditar em
suas idéias, em sua sensibilidade, em sua intuição.
lTer coragem e ousadia de
propor.
lEnquanto se luta pela
transformação maior, ver o que se pode fazer com o que se tem (ao invés de
ficar esperando que outros mudem as condições para então se fazer alguma
coisa).
lImportância dos vínculos
professor-aluno, aluno-aluno.
lTrabalho coletivo; importância
da continuidade do grupo (para construção, implementação e sustentação do
projeto).
lDialética entre condições
objetivas e subjetivas.
lVisão de processo; persistir
(resiliência).
lCriança/jovem é séria(o). Pode
realizar muito mais do que supomos normalmente. Responde de acordo com
expectativa projetada.
13.O que dizem os críticos da Escola da Ponte?
A crítica
maior que tenho percebido não é quanto ao projeto em si, mas às suas condições:
“Ah, mas também, com 230 alunos e período integral, até eu faria revolução
pedagógica”. A rigor, como se percebe, isto nem é uma crítica, mas um mecanismo
de defesa: desqualifica-se a proposta, o que libera o indivíduo de ter de
pensar sobre ela.
Alguns
educadores portugueses ponderam o perigo de se fechar o horizonte em cima de
uma única experiência (“Há mais vida para além da Escola da Ponte”, dizia um
deles). Novamente, não se trata de uma crítica ao projeto mas ao risco de
fechamento.
Aqui no
Brasil, já há educadores alertando para o perigo da pontite ou pontemania,
qual seja, a Escola da Ponte tornar-se mais uma epidemia, mais um modismo, como
tantos outros. Não se trata, evidentemente, de negar as várias contribuições
teóricas (aliás, José Pacheco costuma dizer que o método da Ponte é eclético, que tem influência de muitas
contribuições teóricas), mas de articulá-las em torno de um projeto, e não
ficar pulando de uma para outra a cada novidade. Será que precisamos de uma
nova relação de idéias sobre
a realidade ou nova relação com as
idéias e com a realidade? De novo,
não é uma crítica ao projeto, mas à relação que as pessoas estabelecem com ele.
Há
educadores portugueses que questionam o fato de a Ponte poder escolher seus
professores. A pergunta que fazem é: se isto passasse a acontecer em todas as
escolas, como ficaria enquanto categoria dos professores? Além disto,
argumenta-se que existe o risco de se escolher equivocadamente. É uma crítica a
um aspecto do projeto. Pessoalmente, concordo com a possibilidade de escolha,
uma vez que a pessoa do professor entra muito no projeto e não se pode
comprometer uma inovação em nome de um hipotético problema no futuro.
Diante da
narrativa atual a respeito do “batismo” de um novo professor na Ponte (fica
perdido na escola, pergunta pelo sinal, pelo livro de ponto, pelos horários),
na época em que não se podia ainda escolher os professores, questiona-se se
esta é uma forma solidária de receber um novo colega. Até que ponto não poderia
haver uma certa prepotência, o sentimento de superioridade dos “eleitos”?
Alguns
educadores que conheceram a escola nos últimos tempos criticam a presença de
práticas inadmissíveis num projeto de caráter libertador, como a violência que
presenciaram de professores em relação a alunos. Aqui existe efetivamente uma
grande contradição, e esta é uma das dores d’alma do prof. José Pacheco.
Há um
discurso no sentido de que a experiência da Ponte teria ocorrido em condições
muito particulares e que sua crise seria reflexo do esgotamento destas
condições. É preciso ponderar que toda prática humana ocorre em condições muito
particulares. O concreto é concreto por
ser a síntese de múltiplas determinações, de relações numerosas, nos
ensinava Marx. Entendo que a crise atual tem muito mais a ver com questões
conjunturais (aposentadoria de professores, ampliação dos níveis de ensino,
rápida entrada de novos alunos e professores) do que um eventual esgotamento da
força de seu projeto.
Para a
Escola da Ponte não tornar-se um mito creio que alguns cuidados são
necessários: atenção às suas contradições e limites, ter presente a história de
sua constituição e a abertura para o conhecimento de práticas significativas em
outras escolas.
14.Na sua visão, quais os desafios que estão
postos para o Projeto Fazer a Ponte?
lReconfigurar-se e consolidar-se
no estágio do Aprofundamento.
lExpandir-se para a Educação
Infantil.
lTer uma sistematização mais
abrangente.
lAvançar no trabalho com
projetos.
lAvançar em relação ao vínculo
ainda forte com o programa oficial; revisão dos objetivos; ir além da simples
gestão do currículo nacional: questionar seu conteúdo.
lEnriquecimento das fontes de
pesquisa dos alunos.
lProdução de textos didáticos
por parte dos professores para uso dos alunos (indo além dos manuais de ensino
disponíveis no mercado e nem sempre de qualidade aceitável).
lValorização dos professores na
condução do projeto.
lPossível contribuição de uma
exposição provocativa do professor em algumas temáticas (para provocar o desejo
de estudar aquele objeto de conhecimento).
Entendo que
a falta de sistematização é um dos fatores que está dificultando a continuidade
do projeto. O prof. José Pacheco parece ter receio de que uma sistematização
viesse a se tornar um “receituário”. Mas, este é um risco inevitável. O que
podemos fazer é alertar para ele. Por outro lado, como o próprio Pacheco
poderia ter desenvolvido o projeto da Ponte se não tivesse tido acesso às
elaborações de Montessori, Makarenko, Freinet, Dewey, Piaget, etc.? A
sistematização é tanto um dever, no sentido de preservar a cultura pedagógica
desenvolvida (contra o desperdício da
experiência – cf. Boaventura de Sousa Santos), quanto uma exigência para
dar continuidade às práticas inovadoras. O simples aprender por osmose pode
levar muito tempo, e o sujeito pode não chegar às questões essenciais, se não
tiver uma mediação. A sistematização pode constituir uma forma de mediação. Não
escrever, não citar as fontes e os fundamentos, pode levar à mistificação, como
se fosse obra de um iluminado, como
se as idéias tivessem surgido do nada. Há também o perigo de a experiência
virar mito e tabu: como não está escrita, nem se pode discutir; com isto, o
projeto pode começar a ficar engessado, “imexível”. Sem contar ainda os
eventuais espertalhões que podem começar a reclamar a paternidade do filho
alheio...
As pessoas,
ao conviverem numa instituição, podem simplesmente aceitar as regras que estão
dadas —instituídas— ou criar novas regras, um novo sistema de relacionamento e
trabalho. Aquilo que é criado, se de fato é criado, faz sentido para o coletivo
que ali está naquele momento. Quando se estabeleceu, por exemplo, no século
XVII/XVIII que a escola deveria ficar isolada do mundo havia um sentido: se o
mundo é mal, a criança deve ser preservada dele. Ocorre que, pela dinâmica da
vida, as pessoas migram, não ficam sempre no mesmo espaço. Logo, outras pessoas
vão se incorporando ao grupo. Se as convenções não forem re-significadas, podem
perder a validade. O desafio é manter um caráter instituinte, uma abertura e
uma preocupação em verificar se as regras e dispositivos criados ainda fazem
sentido.
Bibligrafia Relacionada à
Escola da Ponte
ALVES,
Rubem. A Escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir.
Campinas, SP: Papirus, 2001.
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PACHECO, José.
Monodocência – Coadjuvação. In: Ministério da Educação – Departamento da
Educação Básica. Gestão Curricular no 1º
Ciclo. Monodocência-Coadjuvação. Encontro de Reflexão. Lisboa: Ministério
da Educação, 2000.
PACHECO, José. Quando eu for grande quero ir à Primavera e
outras histórias. São Paulo: Editora Didática Suplegraf, 2003.
PACHECO, José. Sozinhos na Escola. São Paulo: Editora
Didática Suplegraf, 2003.
PACHECO, José. Para Alice, com Amor. São Paulo: Cortez,
2004.
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PACHECO, José. Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos.
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SAYÃO, Rosely e AQUINO, Julio G. Democracia: Abre as
asas sobre nós. In: Em Defesa da Escola. Campinas, SP: Papirus, 2004.
[1].Doutor em Educação pela
USP, Mestre em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP, Pedagogo,
Filósofo, responsável pelo Libertad -
Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica. Endereço eletrônico: celsovasconcellos@uol.com.br www.celsovasconcellos.com.br
[2].V Semana de Estudos
sobre a Escola de Ponte, organizada pelo Pueri Domus, de 22 a 26 de maio de 2006 .
[3].Para uma visão mais
ampla, o leitor poderá consultar a bibliografia indicada na final, além de
farto material na internet (o site da escola pode ser um bom começo: www.eb1-ponte-n1.rcts.pt ).
[4].Rui Trindade, Ariana
Cosme, Antonio Nóvoa, Domingos Fernandes, Nuno Augusto, Rubem Alves, Rosely
Sayão, Júlio Groppa, Cláudia Santa Rosa, Eloísa Ponzio, Airton, Alessandra,
Antônio..
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